O Paradoxo Onipotente: Como o Petróleo Sustenta o Futuro Num Mundo Faminto por Justiça
- Sylvio Nunes

- 20 de jun.
- 8 min de leitura
Numa era marcada pela aceleração tecnológica e por discursos cada vez mais polarizados sobre a salvação climática, há uma substância que permanece em silêncio, mas em plena atividade: o petróleo. Este velho titã, já chamado de maldição por uns e milagre por outros, não é apenas um combustível — é a própria metáfora de nosso tempo: contraditório, vital, sujo e ainda necessário.
A Onipotência do Paradoxo
O paradoxo do petróleo é mais do que uma contradição — é uma forma onipotente de realidade. Ele não apenas move motores; ele move civilizações, sustenta orçamentos e viabiliza o futuro. Nos municípios e Estados brasileiros, especialmente aqueles banhados pela riqueza do pré-sal e da Margem Equatorial, os royalties do petróleo transformaram-se em vasos capilares do desenvolvimento.
Maricá (RJ), Ilhabela (SP), Niterói (RJ), São João da Barra (RJ), Campos dos Goytacazes (RJ) — esses nomes aparecem não apenas nos mapas, mas também nas planilhas do Tesouro Nacional. Com bilhões recebidos em royalties e participações especiais, essas cidades saíram da escuridão orçamentária e hoje investem pesadamente em educação pública integral, infraestrutura viária, programas sociais e até em fundos soberanos para garantir o futuro das próximas gerações.
Em 2023, os municípios produtores de petróleo arrecadaram mais de R$ 40 bilhões, sendo o petróleo a principal fonte de recursos próprios em muitas localidades onde o investimento privado jamais ousaria pisar. Essa é a onipotência do paradoxo: é a energia da poluição que permite purificar as injustiças históricas da negligência estatal.
Smil e o Contraditório como Solução
Vaclav Smil, o engenheiro-filósofo dos números, alerta em "Os Números Não Mentem": não há solução elegante para problemas gigantescos sem encarar os dados brutos. Ele nos mostra que a energia — em qualquer forma — é o fundamento invisível do bem-estar humano. E é com um certo desconforto necessário que ele afirma: “não se alimenta uma população de 8 bilhões de pessoas com boas intenções ecológicas”.
É no contraditório que mora a solução: usar o velho para criar o novo, usar o poluente para salvar o ambiente, usar o lucro do carbono para gerar alimento, saúde e educação para os que têm fome — não apenas de calorias, mas de dignidade.
Smil defende que as transições energéticas históricas (lenha para carvão, carvão para petróleo, petróleo para gás e nuclear) levaram séculos. Nenhuma foi suave. Todas tiveram impactos. A atual transição verde, apesar do entusiasmo, ainda é estruturalmente dependente dos materiais, da logística e do capital acumulado por décadas de exploração de petróleo.
Algumas das maiores inovações contemporâneas nasceram em solo fértil de investimentos irrigados por petróleo:
Internet: a infraestrutura das redes mundiais de fibra ótica e data centers foi construída com investimentos públicos e privados financiados por combustíveis fósseis.
Medicina de ponta: a indústria farmacêutica global, altamente intensiva em energia, depende do petróleo não apenas como fonte de energia, mas como matéria-prima de polímeros, reagentes e logística hospitalar.
Carros elétricos: ironicamente, a mineração de lítio, cobalto e níquel para baterias consome diesel em larga escala — e os navios que transportam essas baterias ao redor do mundo são movidos por óleo combustível.
A própria energia solar e eólica: dependem de turbinas, painéis, cabos e infraestrutura pesada feita com aço, cobre e terras raras — todos explorados com maquinário movido a petróleo.
A cadeia produtiva do petróleo, longe de ser apenas energética, irriga o sistema financeiro, industrial e tecnológico do mundo moderno. Desconectá-la sem um plano gradual seria como tentar substituir o coração por um implante de carbono verde, sem anestesia e em plena cirurgia.
Royalties como Antídoto Social
No Brasil, onde a desigualdade é estrutural e a pobreza é sistêmica, os recursos do petróleo oferecem uma alavanca que nenhuma utopia verde seria capaz de erguer sozinha. O Fundo Soberano de Maricá, por exemplo, ultrapassou R$ 2 bilhões e já serve como garantia para políticas públicas duradouras, inclusive em áreas ambientais. O município criou moedas sociais, ônibus gratuitos, programas de renda básica, hortas comunitárias e projetos de reflorestamento — todos financiados pelo petróleo.
A mesma lógica pode ser aplicada à escala nacional: enquanto ainda vendemos petróleo, devemos usá-lo para investir em independência energética limpa, em biocombustíveis de segunda geração, em transporte público elétrico, em ciência e tecnologia, e, sobretudo, em educação de qualidade.
Como diria Noah Harari, “o poder do homo sapiens reside na sua capacidade de cooperar em grandes números por meio de histórias compartilhadas”. Talvez esteja na hora de contarmos uma história nova, onde não há vilões nem mocinhos, mas seres conscientes da complexidade do tempo histórico que habitam. Essa história deve aceitar que o petróleo, essa sombra da Terra, é também a tocha que pode iluminar o caminho. Não se trata de venerá-lo, mas de usá-lo com sabedoria, como um Prometeu tecnológico que arrisca o fogo do passado para forjar um novo futuro.
Mas o paradoxo não para no campo da energia. Ele se estende aos próprios conceitos de sustentabilidade e progresso. A verdadeira sustentabilidade, como alertam pensadores como Smil e Hans Rosling, exige resiliência econômica, e não apenas coerência ambiental. Não adianta clamar por um mundo verde se ele for socialmente cinza, com milhões de vidas apagadas pela ausência do básico.
A onipotência do petróleo está em sua capacidade de gerar tempo — e tempo, neste contexto, é a moeda mais rara da civilização. Ele compra tempo para que as tecnologias verdes amadureçam, para que os sistemas elétricos se tornem mais interconectados, para que a infraestrutura da nova era se construa não em cima de promessas, mas de concreto, cobre, grafeno e vontade política.
É preciso ter clareza: nenhum painel solar surge do nada, nenhuma turbina eólica se ergue por si só em uma planície isolada. Há tratores, linhas de transmissão, helicópteros, soldadores, técnicos, sistemas de backup — e em todos eles vibram o motor do petróleo.
O Brasil: Atlas dos Trópicos
O Brasil, por sua configuração geográfica, riqueza mineral, potência hídrica e matriz energética híbrida, carrega sobre os ombros uma responsabilidade global única: demonstrar que é possível transitar entre dois mundos sem quebrar os joelhos no meio do caminho. E para isso, o petróleo nacional — especialmente o da camada do pré-sal e da margem equatorial — é um ativo estratégico de sobrevivência civilizatória.
O Brasil é o Atlas dos trópicos, carrega o peso da floresta amazônica, da população vulnerável e da responsabilidade climática imposta por um Norte que já lucrou sua cota histórica de carbono. Mas diferente do Atlas mitológico, que sustenta o céu sem esperança de alívio, o Brasil pode usar o petróleo para redesenhar o próprio firmamento.
É esse o sentido profundo dos royalties: eles não são uma benesse, mas um direito. Não um prêmio pelo acaso geológico, mas uma chance histórica de reverter séculos de desigualdade estrutural. O município que investe em saneamento básico com verba do petróleo salva mais vidas e mais ecossistemas do que qualquer discurso europeu sobre neutralidade de carbono até 2050.
O Futuro é Plural
O mundo contemporâneo caminha para uma era de sistemas energéticos plurais, onde o petróleo, o vento, o sol, a biomassa e o hidrogênio coabitarão por décadas — talvez séculos. Como disse Vaclav Smil, “toda transição energética anterior envolveu adição antes da substituição”. O petróleo, longe de desaparecer de repente, será o pilar que sustenta a nova catedral energética do século XXI. A ingenuidade de quem propõe uma ruptura total com os fósseis ignora o tempo da matéria, o tempo da engenharia e, principalmente, o tempo das pessoas. O pedreiro que hoje recebe um salário de um hospital construído com royalties precisa comer hoje, não em 2045. A criança que recebe merenda de um programa de educação financiado com receita petrolífera precisa estudar agora, não depois da COP 30.
Conclusão Filosófica: O Antídoto Está no Veneno
Como nos antigos textos alquímicos, onde o veneno também é cura, o petróleo encarna a contradição máxima da humanidade moderna. Ele é a origem do problema — mas também, se bem utilizado, é a chave da solução.
A verdadeira transição energética exige coragem não apenas técnica, mas moral e intelectual. Coragem de reconhecer que a impureza, a ambivalência e o contraditório são condições inevitáveis do progresso humano. É nesse espaço de incerteza que brota o futuro, e é nele que o Brasil pode — e deve — fincar sua bandeira.
Talvez, sim, talvez... talvez possamos todos, enfim, renunciar à nossa arrogância industrial, abandonar os grilhões da modernidade fóssil e viver como anjos nus entre as folhas de bananeira. Talvez o futuro — esse velho mitificador profissional — nos permita regressar à pureza perdida dos tempos imemoriais. Podemos imaginar um mundo onde nos alimentamos apenas de hortaliças orgânicas colhidas com gratidão, onde vestimos fibras de cânhamo não tingidas, onde o transporte se faz em bicicletas de bambu e os abrigos são feitos de barro e boa vontade. Um mundo em que o vento nos move, o sol nos aquece, e as marés sussurram algoritmos ecológicos aos engenheiros regenerativos do novo Éden.
Mas será isso possível? Porque, infelizmente, a realidade não costuma respeitar roteiros utópicos.
Antes, porém, de se deixar seduzir por esse bucólico cenário pós-industrial, convém lembrar que quase tudo ao seu redor — incluindo o dispositivo pelo qual você lê estas palavras — é um produto direto ou indireto do petróleo.
Seu celular é um milagre petroquímico ambulante: contém plásticos derivados de hidrocarbonetos, foi montado em fábricas alimentadas por energia fóssil, transportado por navios movidos a óleo bunker, e depende de servidores refrigerados por sistemas energéticos ainda majoritariamente abastecidos por gás natural. Até o silício precisa ser purificado em temperaturas que só a queima de combustíveis fósseis ainda consegue fornecer em escala.
E quanto à alimentação orgânica? Maravilhosa no idealismo, mas em larga escala depende de caminhões a diesel, fertilizantes derivados de amônia sintética — cuja produção consome aproximadamente 1,5% de toda a energia global — e embalagens plásticas esterilizadas com derivados do petróleo. Sem essa cadeia produtiva, os 8 bilhões de Homo sapiens que hoje povoam a Terra retornariam rapidamente a algo mais próximo de 1 bilhão — o número que o planeta sustentava antes do advento do petróleo.
A Ironia da Transição
Ironia das ironias: até as energias limpas são, por ora, profundamente sujas. As turbinas eólicas usam compósitos de carbono e resinas derivadas do petróleo. Os painéis solares exigem mineração intensiva, extração de silício, transporte pesado e estruturas metálicas forjadas em fornos alimentados por gás natural. A energia solar é limpa, sim — até o momento em que você tenta construí-la.
A bateria do carro elétrico, ícone supremo do futuro verde, exige mais de 200 kg de minerais extraídos com escavadeiras a diesel, e sua reciclagem — que ainda engatinha — depende de plantas industriais alimentadas por fontes de energia que, globalmente, ainda têm mais de 80% de matriz fóssil, segundo dados da IEA (Agência Internacional de Energia).
Não por acaso, os países mais ricos em transição energética — Alemanha, Noruega, Dinamarca — financiaram suas infraestruturas verdes com décadas de consumo fóssil intenso. A Noruega, tão altiva em sua matriz limpa, deve seu fundo soberano — um dos maiores do planeta — ao petróleo do Mar do Norte. Com o lucro fóssil, ela agora financia um futuro pós-carbono. Uma estratégia que, convenhamos, exige petróleo para ser anticarbônica.
Então não, não é viável — nem honesto — propor que viveremos sem petróleo amanhã. A utopia verde é um projeto sério, necessário e urgente, mas sua viabilidade depende ainda de investimentos colossais, cadeias produtivas robustas e uma transição inteligente.
Enquanto isso, precisamos de petróleo para gerar riqueza, que será então investida em ciência, educação, energias limpas, saneamento, mobilidade elétrica e descarbonização. Ignorar essa interdependência é não apenas tecnicamente ingênuo, mas socialmente irresponsável.



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