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Entre a Cautela e a Omissão

Advocacia Pública, Práticas Preventivas e a Superação do “Apagão das Canetas” no Direito Administrativo Contemporâneo


O fenômeno que se convencionou denominar como “apagão das canetas” tem desafiado, de forma crescente, a efetividade da Administração Pública contemporânea. Trata-se de uma disfunção comportamental que atinge os agentes públicos responsáveis pela condução de processos decisórios, notadamente aqueles que exigem a prática de atos administrativos como a celebração de contratos, convênios, parcerias, nomeações e demais medidas necessárias à consecução do interesse público. O receio de responsabilização pessoal, muitas vezes ancorado em interpretações retrospectivas e punitivistas dos órgãos de controle, tem estimulado uma cultura de omissão, marcada pelo abandono da discricionariedade legítima e pela retração administrativa generalizada.


Essa postura de paralisia institucional não decorre exclusivamente de lacunas normativas ou de má-fé dos agentes públicos, mas sim de um ambiente decisório assimétrico, no qual o risco individual da atuação pesa mais do que os ganhos institucionais da decisão. O medo, nesse contexto, atua como elemento regulador das condutas administrativas, levando ao bloqueio de ações estratégicas, ao represamento de políticas públicas e à recusa em exercer competências legais por simples temor de responsabilizações civis, penais ou administrativas. Esse quadro é agravado pela multiplicidade de instâncias fiscalizatórias, pela ausência de previsibilidade jurídica e pela pouca integração entre os sistemas de controle e os órgãos consultivos da Administração.


A superação desse fenômeno demanda uma nova racionalidade institucional, fundada na prevenção e na confiança. Nessa chave, torna-se fundamental reconhecer que o apagão das canetas não é um problema meramente comportamental, mas um sintoma de falhas estruturais no modelo de governança pública. A resposta ao problema, portanto, deve ser igualmente estrutural. E é nesse ponto que emerge a relevância do fortalecimento do protagonismo técnico e institucional da Advocacia Pública como instrumento de racionalização da ação administrativa, bem como a imprescindibilidade da adoção sistemática de práticas preventivas de assessoramento jurídico.


A Advocacia Pública, em suas diversas esferas, deve ser compreendida como função essencial à justiça administrativa, não apenas na defesa judicial do Estado, mas sobretudo na orientação jurídica da atividade estatal. A presença institucionalizada de advogados públicos no planejamento, na concepção e na execução das políticas públicas constitui elemento de segurança e de estabilidade decisória, servindo como anteparo técnico às incertezas jurídicas que permeiam a atuação cotidiana dos gestores.


Quando bem estruturada e devidamente valorizada, a Advocacia Pública permite que as decisões administrativas sejam tomadas com maior respaldo, reduzindo o espaço de arbítrio e de insegurança que alimenta o comportamento omissivo dos gestores.


Ao oferecer pareceres técnicos preventivos, construir orientações normativas, participar de comissões de planejamento e estabelecer canais contínuos de diálogo com os órgãos de controle, a Advocacia Pública atua como verdadeiro eixo de conexão entre a legalidade e a eficiência. Trata-se de uma atuação que transcende o mero controle da juridicidade formal, para alcançar uma dimensão estratégica de assessoramento, na qual o objetivo central é garantir que as ações administrativas sejam juridicamente seguras, tecnicamente consistentes e institucionalmente protegidas. Esse modelo de assessoramento jurídico proativo constitui antídoto eficaz ao medo institucionalizado e ao congelamento da ação administrativa.


A Lei 14133/2021 representa importante avanço normativo na consolidação dessa cultura jurídica preventiva. Ao prever expressamente a obrigatoriedade de manifestação prévia da assessoria jurídica nos atos que envolvam contratações públicas, o novo regime estabelece parâmetros mais claros para a responsabilização institucional, bem como valoriza o papel consultivo da Advocacia Pública.


A norma não apenas reconhece a importância do parecer jurídico prévio, como também o insere em um contexto de planejamento e gestão de riscos, fomentando a antecipação de cenários e a adoção de medidas de mitigação jurídica já na origem do processo decisório.


Com efeito, a presença do assessoramento jurídico na etapa de estruturação dos contratos, na definição da matriz de riscos, na verificação de compatibilidade entre os estudos técnicos e os objetos pretendidos, entre outros pontos, permite identificar previamente vícios formais e materiais, fortalecendo a confiança do gestor na regularidade de sua conduta. Assim, mais do que controlar, a atuação da Advocacia Pública contribui para tornar possível a ação administrativa, criando as condições técnicas e jurídicas necessárias para que o gestor exerça suas atribuições com responsabilidade, mas também com tranquilidade funcional.


Esse novo desenho institucional exige, contudo, que a Advocacia Pública seja dotada de autonomia técnica, recursos adequados e prerrogativas funcionais compatíveis com sua missão. O protagonismo esperado dos advogados públicos não pode ser retórico: ele depende de uma política de valorização da carreira, da consolidação de estruturas consultivas robustas e da existência de espaços institucionais de interlocução entre os diferentes atores da Administração. É preciso romper com o modelo de parecer cartorial e pós-factual, substituindo-o por um assessoramento contínuo, multidisciplinar e orientado por resultados.


Além disso, a adoção de práticas preventivas deve ser compreendida como um compromisso institucional da Administração como um todo, e não apenas como uma tarefa da assessoria jurídica. A cultura da prevenção envolve a capacitação dos gestores, o fomento à governança, a integração entre os órgãos internos e externos de controle, e, sobretudo, a valorização do processo de tomada de decisão como ato coletivo e informado. O apagão das canetas não será resolvido por decretos de coragem, mas pela reconstrução de um ecossistema institucional no qual decidir seja menos arriscado do que se omitir.


A experiência administrativa demonstra que decisões seguras são aquelas embasadas em fundamentos técnicos consistentes, respaldadas por pareceres jurídicos sólidos e inseridas em planejamentos estruturados. Essa tríade — técnica, juridicidade e planejamento — constitui o núcleo racional da ação pública eficiente. E é precisamente nesse ponto que o papel da Advocacia Pública se torna insubstituível. Quando inserida de forma estratégica nesse circuito, a assessoria jurídica não apenas oferece segurança jurídica, mas induz boas práticas, aprimora a governança e protege o interesse público de maneira preventiva.


A reconfiguração da cultura institucional, portanto, passa pela valorização da expertise jurídica interna como elemento legitimador e facilitador das decisões administrativas. Esse novo papel da Advocacia Pública exige mudança de mentalidade não apenas dos gestores, mas também dos próprios órgãos de controle, que devem reconhecer o valor do assessoramento prévio e da orientação jurídica como formas legítimas de evitar a responsabilização indevida e promover a eficiência administrativa.


Ao reforçar o protagonismo técnico e institucional da Advocacia Pública e fomentar a adoção de práticas preventivas, o Estado brasileiro cria as condições para enfrentar os efeitos do apagão das canetas e construir uma Administração Pública mais eficiente, segura e comprometida com resultados legítimos. Trata-se de um movimento de reconstrução da confiança no processo decisório estatal, no qual a responsabilidade funcional deixa de ser um fardo e passa a ser exercida com respaldo, previsibilidade e apoio institucional.


Assim, ao invés de punir a ousadia responsável, o sistema passa a premiar a boa decisão, baseada em dados, estudos e pareceres técnicos. A consequência desse novo arranjo é a substituição da cultura do medo pela cultura da responsabilidade, da omissão pela ação informada, e da desconfiança institucional pela cooperação entre os atores públicos.


A superação do apagão das canetas não é apenas uma demanda técnica ou normativa. É, antes de tudo, um desafio institucional e cultural que exige uma nova concepção de Administração Pública: uma Administração que decide com base na razão, com apoio técnico qualificado e com a segurança jurídica necessária para enfrentar os riscos da ação estatal. Nesse horizonte, a Advocacia Pública não é obstáculo, mas pilar; não é freio, mas garantia; não é acessória, mas essencial.


Raphael Trindade Wittitz, Advogado Administrativista com ampla vivência junto à Administração Pública na área de Licitações e Contratos

 
 
 

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